Um olha para o outro parecendo perguntar se era aquilo realmente que ele estava pretendendo. O semblante de quase morte dos dois denuncia a verdade e nem é preciso uma sequer confirmação para a final constatação. Para tentar disfarçar algo simplesmente indisfarçável os dois começam a falar quase que simultaneamente.
- Não é isso que você está pensando.
Fazem um gesto que por pouco lembra um sorriso, mas mantêm a seriedade após alguns milésimos de segundo. Os dois começam a expor as razões que os levaram àquele momento ímpar.
Alberto, um louro, quase albino, relativamente baixo e gorducho, com a base de uns 44 anos mal vividos, toma a iniciativa.
- Acho que vou ser o primeiro a falar, deixe-me pensar... Cresci num orfanato e não tinha nenhum amigo, até que conheci a única pessoa que realmente gostou e se importou comigo, minha esposa. Nos casamos, consegui um emprego. Estava tudo indo extraordinariamente bem, até o momento em que me envolvi com amizades erradas que me fizeram pouco a pouco acreditar que fidelidade era uma burrice. Aceitei sair com uma das mulheres que estava com eles, uma ruiva. Começamos a nos beijar, quando estávamos na cama e olhei ofegante para a ruiva lembrei-me de minha mulher e todos os sentimentos que nutria por ela. Desisti de terminar o que havia começado. Tentei esquecer isso, vivi com minha esposa como se aquele dia nunca houvesse existido. Passado alguns anos um amigo dela sofreu um acidente e estava precisando de uma transfusão de sangue. Era compatível e logo me dispus a doar. Para minha surpresa eu era portador do vírus HIV, saí arrasado e fiz o que devia ter feito desde o início, contei a minha mulher que desesperada me expulsou de casa e também fez o exame. Nunca fui muito religioso, mas me lembro de ter rezado muito na noite anterior ao resultado. Infelizmente ela também era soropositivo. Depois disso, fui morar num pequeno hotel e perdi o emprego, não possuía mais estímulo em buscar outro e entreguei-me totalmente à bebida. Finalmente, após alguns anos descobri pesarosamente através de conhecidos, que minha esposa faleceu por doenças relacionadas a AIDS. Ela também me escondeu algo imperdoável, esperava um filho meu quando me expulsou de casa. Soube que a criança não foi contaminada e nasceu saudável, sendo levada para um orfanato logo após o falecimento da mãe. Procurei por muito tempo, encontrei algumas pistas, mas nunca me levavam a nada, cansei de ter esperanças, desisti de procurar e aqui estou.
Célio observa atentamente. É um homem de feições até certo ponto vistosas, corpo atlético, aparentemente uns 41 anos, voz forte, por vezes grosseira. Após o silêncio de Alberto ele presume o fim da história e começa a resumir os acontecimentos de sua vida.
- Não há um motivo grandioso para estar tentando me matar. Fiz tratamento, pois sempre sofri de depressão, tenho altos e baixos, sinto como se não pertencesse a esse mundo. Minha felicidade sobrevive de coisas doentias, sinto prazer com fatos bizarros, tenho que presenciar coisas estranhas para me sentir realizado.
Eles ficaram em silêncio analisando tudo até aqui dito, passaram a tentar apontar ao outro seus equívocos no modo de pensar. Nesse momento suas vidas ganham uma razão para prosseguir por mais alguns instantes, evitar que o maluquinho ao lado pule.
Alberto mentaliza tudo o que a vida havia lhe proporcionado de bom, até os mínimos momentos de leve felicidade foram levados em conta, e principalmente, fixou em sua mente a imagem de como imaginava seu filho que deveria estar com 9 anos de idade. Não queria que crescesse sem pai nem mãe num orfanato, não queria que terminasse como ele... Imaginou que ainda queria dar muito amor e carinho à essa criança. Há muitas coisas ainda a serem vivenciadas ao lado do filho. Desiste de tudo, se afasta da ponte e estende a mão para Célio que olha de forma relutante, ele não aceita...
- Não vale a pena levar essa loucura adiante - diz Alberto - vamos tentar mudar nosso quadro.
- Já tomamos nossa decisão na hora que saímos de nossas casas e viemos a essa ponte, não existe mais volta. Você acha que alguém vai se importar se nós pularmos? Amanhã, talvez, saia algo no jornal. Não temos ninguém para chorar nossa morte. Você crê que seu filho vai te querer quando souber o que houve? Provavelmente nem irá encontrá-lo, você sabe quantos orfanatos existem na cidade? Isso é, se ele estiver na cidade.
Alberto se desespera, pois mesmo apesar de tudo, Célio mostrava uma grande centelha de lucidez. Isso causava um sentimento mais aterrorizante que o original, o qual o levara a estar ali naquela ponte.
Célio chora copiosamente, deixando toda a fragilidade aflorar sem a mínima vergonha. Afinal, o que a vergonha poderia representar num momento como aquele? Alternando momentos de lucidez assustadora e insanidade deprimente, relembra mais algumas passagens de sua vida.
- Tenho dinheiro, mas não tenho amigos. Não tenho lembrança de alguém que tenha tomado alguma atitude de benevolência comigo. Meu pai me deixou dinheiro, uma empresa, mas nenhum amor, carinho, nem sequer um afago. O dia de sua morte foi um dos dias mais confusos de minha vida. Não fiquei feliz, mas não serei hipócrita em dizer que fiquei triste. Não sabia se tinha perdido um pai ou um desconhecido. Minha mãe nos abandonou, pois não suportou a convivência doentia com meu pai, que era violento e totalmente insensível. Não tive nenhum irmão. Era sozinho e inventava amigos e uma felicidade imaginária para tentar não enlouquecer.
Alberto se comove totalmente com o que ouve, procura palavras para acalentá-lo. Percebe que na vida dos dois faltava um encaixe, parecia que não havia nenhuma finalidade para serem criados, talvez uma aberração dos desígnios de Deus.
O céu toma a cor de acinzentado entristecido. Ambos olham para baixo e baixo rezam ou balbuciam monossílabos sem nexo. Olham para cima, talvez esperando alguma resposta. Após um longo silêncio, Célio quebra a surdina e faz a seguinte proposta:
- Pulamos nós dois no três.
Alberto, cabisbaixo, concorda com a cabeça. Sente que não tem mais opções. Passa a contar de olhos fechados, tão apertados que chegam a doer.
-1... 2.... 3! E um salto solitário no vazio.
Alberto se joga no abismo sem final aparente. Nem percebe que ninguém está ao seu lado. Aguarda os poucos segundos de queda livre apreciando o barulho do vento em seu ouvido, nenhum medo se faz mais presente. Sente cada sentido seu sendo inativado, até que chega o iminente e inevitável fim.
Enquanto isso, Célio se apoia totalmente no parapeito para observar cada detalhe sórdido. Admira extasiado a cena. Sente um prazer doentio e desmedido. Parece não sentir culpa e com a consciência leve como uma pluma fica alguns minutos admirando as sobras cadavéricas minúsculas. Fica orgulhoso com sua grande atuação e se elogia cinicamente.
-Merecia um Oscar por hoje, aliás, como sempre.
Ele se vai como nas outras vezes. Posteriormente, acordará cedo e retornará ao local, aguardando quem sabe mais um colega suicida.
Claudenor de Albuquerque.